sexta-feira, 30 de abril de 2010

Pensando errado





Pouco antes de me tornar sexagenário, tomei a decisão de retornar à universidade. Quis e fui estudar Filosofia, instigamento que me acompanha desde a adolescência. Havia vagas no curso e, por já ter diploma universitário, estava dispensado de exames vestibulares.


Na primeira noite, meia hora antes de a aula começar, comecei a duvidar de minha decisão: para que voltar à faculdade; e se a moçada risse de mim; e se eu não conseguisse acompanhar o ritmo da classe, de colegas e professores? O nervosismo, porém, foi substituído por alívio quando vi professores que tinham sido meus alunos em outros cursos, jovens colegas que recebiam, calorosa e amavelmente, o calouro velhusco. Meus primeiros fantasmas fugiram.

Então, o bedel me convidou a ir à sala do diretor da faculdade, que desejava falar comigo. Respeitoso, pedi licença, entrei. O diretor, jovem filósofo, mal me olhou. Com um sinal, orientou-me a sentar-me numa cadeira à sua frente. Tinha um questionário em branco sobre a mesa. Perguntou-me, sem preâmbulos: “Por que o senhor pretende estudar Filosofia?” Surpreendi-me, a vontade de perguntar: “Ué, o que o mestre tem a ver com isso?” Mas, ainda respeitoso, respondi: “Quero reaprender a pensar.” E ele: “O senhor acha que pensa errado?” Já querendo mandá-lo às favas ou a outro lugar, confirmei: “Não, não acho: tenho certeza.” O diretor dispensou-me sem que, até hoje, eu saiba o porquê daquela entrevista.

Ora, já me acontecera antes. Primeiro, na adolescência, quando meus pais me enviaram a um psiquiatra com um argumento definitivo: “Esse garoto pensa errado.” E tudo em que eu pensava e desejava era ser escritor, apenas isso. Depois, já quando jornalista e aprendiz de escritor, ouvi de um bom amigo a observação categórica a meu respeito: “O problema é que você pensa errado.”

O fato é que posso dizer ter-me sido notável a experiência de cursar a Faculdade de Filosofia. Tudo aquilo que eu aprendera na mocidade, em outros cursos, incluindo o colegial, todo o ensinamento de meus antigos mestres ainda estavam vivos e válidos. Sócrates, Aristóteles, Espinoza, Kant, o imenso panteão filosófico, todos tinham sobrevivido, ainda que esquecidos no cotidiano das pessoas. A aventura era formidável, viajar pelas ideias, pelo pensamento imortal da humanidade. Os tempos, porém, eram outros. Percebi-o ao ver jovens colegas rirem-se de mim por eu me levantar, ficando em pé, à entrada de cada professor: “Deixe de ser cafona, meu. Isso não se faz mais.” — diziam-me. Para eles, aluno e professor estavam no mesmo patamar. E, então, entendi: o respeito cedera lugar à falta de compostura e de postura. Tive, na Filosofia, a plena certeza de, realmente, eu estar pensando errado. Primeiro, por ainda acreditar em princípios imortais em tempos de valores fugazes. E — paradoxalmente — por perceber estar-me deixando contaminar por modismos do tempo, pela rapidez das coisas, pela desimportância e descartabilidade dos objetos de mercado. Pois, sem o desejar, a verdade é que, no final do já longínquo século 20, ao encerramento dos 1990, eu começara a fazer concessões em relação ao intocável. A banalização e a banalidade do mal — de que nos advertira Hanna Arendt — já me atingiam também, pois eu passara a aceitar e a admitir o inaceitável e o inadmissível. Fui salvo, porém, por insistir em pensar errado, resistindo às ondas que tragavam rebanhos inteiros de carneiros.

Agora, próximo dos meus 70 anos, voltou-me uma quase desesperada vontade de retornar à faculdade de Filosofia, amedrontado diante da pressão para pensar como massa, vendo ruírem-se-me algumas regras pétreas da vida, novamente enredado pela banalização das coisas. A pressão é quase insuportável: trocar de automóvel, de computador, de celular, trocar de móveis ou de casa, trocar fogão e geladeira. Ninguém mais quer saber de meu nome ou de minha história, mas de meu RG, de meu CPF, de meu código de acesso ao mundo eletrônico, de minha senha para provar que eu sou eu mesmo, que estou vivo, que existo, que sou.

Ora, algo é isso porque não é aquilo. E o homem é porque não é. Sou humano por não ser apenas bicho; sou gente por não ser máquina. Agora, no entanto, querem que eu deixe de ser o que sou para ser o que não sou. Se eu não for bom consumidor, não existo. Ou existo, mas sem ter qualquer importância.

Sinto, no fundo, estar incluído entre tudo o que é descartável. Assim, sei que preciso insistir em continuar pensando errado. Afinal de contas, como já entendera Anatole France: “Se 50 milhões de pessoas dizem uma grande besteira, esta continua sendo uma grande besteira.”



Cecílio Elias Netto, escritor e jornalista.

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Extraído do jornal Correio Popular, Editoria Caderno C, de 09/04/2010 - Campinas/SP.