Observava as crianças a comer macarrão, em trabalhosa mas aplicada operação de espetar com o garfo cada canudinho de penne na manteiga para levá-lo à boca. De vez em quando a mãozinha impaciente de uma delas, e logo a de outra, largava o garfo e pegava a comida para comer, até que a mãe restabelecia os bons costumes ocidentais.
Evitei comentar ali — para não parecer má influência — que havia visto uma reportagem na televisão em que o guia tuaregue convida o repórter para jantar em sua casa um prato típico, arroz integral com carneiro desfiado. Sem ta lheres à vista, o repórter se mostrou atrapalhado, até ser instruído a comer com a mão, fazer um bolinho de comida com a ponta dos dedos e levá-lo à boca. O fino da etiqueta tuaregue.
Em um livro saboroso sobre os hábitos alimentares desde a Antiguidade aos nossos dias, chamado 'O Ritual do Jantar', a professora canadense Margareth Visser enfatiza que os árabes educados podem, sem melindrar ninguém, preparar no prato, com a mão, um bocado de comida ajuntando o que lhes agrade e levá-lo à boca com os dedos, e assim proceder durante todo o jantar, mesmo de cerimônia.
Claro, isso não vale para o lado de cá da cultura, a não ser no sertão. No Nordeste e no Norte do Brasil, é comum ver pessoas comendo com as mãos, em pratos ou cuias. Os refogados e o feijão recebem a consistência da farinha para facilitar a operação. Isso não é mal ou bem-educado, é o jeito. Nessas vidas resumidas ao mínimo, o que importa é a necessidade — comer; não há espaço para a maneira — o talher.
Ao ver as crianças pegando o macarrão com os dedinhos, viajei. Lembrei-me de quando, meninos, podíamos algumas vezes comer com a mão. O prazer de comer assim era completamente outra coisa.
— Mãe, posso fazer capitão?
O dicionário registra esse sentido da palavra capitão como brasileirismo: “Bocado de comida que tenha molho, amassado com farinha, entre os dedos, à moda de bolo, e levado com a mão até a boca”. Se está no dicionário...
Era uma relação lúdica com a comida. Trazia talvez sensações da primeira infância, ou de pouco mais tarde, amassar argila, barro... Criar formas, esculpir, moldar, modelar, e comer. Não era qualquer comida que permitia esse prazer manual e oral. Não se faz capitão com comida ensopada, macarrão, salada... Tem de ter uma base moldável. O melhor capitão se fazia com arroz, feijão, farofa, carne moída e couve. De cada coisa um pouquinho, que os dedos ágeis iam puxando, agregando, amassando. Os mais aplicados davam um acabamento na palma da mão: ora alongado como um quibe, ora oval, ora redondo. O bolinho habilmente formado vinha rico de sabores e chegava à boca com a ajuda dos cinco dedos irmanados.
Pois não era assim que todo mundo comia antes da invenção dos talheres? Nem faz tanto tempo. Foi somente no século XVII que o espeto com dois dentes chegou à mesa dos europeus para ajudar a fisgar pedaços de carne no prato. No começo do século XIX veio o garfo de três dentes, e no fim, o de quatro.
Os meninos urbanos de hoje não saberiam nem poderiam fazer capitão. E, no entanto — contradição curiosa —, come-se cada vez mais com a mão: sanduíches, cachorros-quentes, pastéis, empadinhas, croquetes, bolinhos, coxinhas, canapés, petiscos, petits-fours, salames, batata frita, camarões fritos, patês, pipoca, pizza em pedaços, quibe, esfiha... Em restaurantes chiques, como o Emiliano, de São Paulo, são oferecidas opções de “finger food” no brunch, algo como “comida de mão”. Mas isso é outra coisa.
Havia uma idade para comer capitão. Não penso em me aproveitar da circunstância de um jantar tuaregue para retomar meus talentos. Tentei secretamente em casa e não deu certo. Algumas coisas são mais perfeitas na memória.
Ivan Angelo
Revista Veja São Paulo (17/03/2010)