“A vida é suficientemente
amarga para que, além disso, fiquemos chorosos, melindrosos ou histéricos só
porque algo se antepôs em nosso caminho e não nos deixa seguir nosso percurso
até a felicidade, que às vezes vai lado a lado com o desatino.”
***
Domingo,
17 de março
Se eu algum dia me suicidar,
será num domingo. É o dia mais desalentador, o mais sem graça. Quem me dera
ficar na cama até tarde, pelo menos até as nove ou as dez, mas às seis e meia
acordo sozinho e já não consigo pregar o olho. Às vezes penso o que farei
quando toda a minha vida for domingo. Quem sabe? Vai ver que me acostumo a
despertar às dez horas. Fui almoçar no Centro, porque os rapazes saíram para o
fim de semana fora, cada um para seu lado. Comi sozinho. Nem sequer tive forças
para entabular com o garçom o fácil e ritualístico intercâmbio de opiniões
sobre o calor e os turistas. Duas mesas adiante, havia outro solitário. Tinha o
cenho franzido, partia os pãezinhos a socos. Duas ou três vezes olhei para ele,
e numa oportunidade seus olhos cruzaram com os meus. Tive a impressão de que
ali havia ódio. O que haveria para ele nos meus olhos? Deve ser uma regra
geral, isso de nós, os solitários, não simpatizarmos uns com os outros. Ou será
que, simplesmente, somos antipáticos?
Voltei para casa, dormi a sesta
e me levantei pesado, de mau humor. Tomei uns mates, mas estavam amargos, e me
aborreci. Então me vesti e fui outra vez ao Centro. Desta vez me meti num café;
consegui uma mesa junto à janela. Em um lapso de uma hora e 15, passaram
exatamente 35 mulheres interessantes. Para me entreter, fiz uma estatística
sobre o que mais me agradava em cada uma. Anotei tudo no guardanapo de papel.
Este é o resultado. De duas, gostei de cara; de quatro, do cabelo; de seis, do
busto; de oito, das pernas; de 15, do traseiro. Ampla vitória dos traseiros.
*
Segunda,
18 de março
Ontem Esteban voltou à
meia-noite, Jaime à meia-noite e meia, Blanca à uma da manhã. Escutei todos,
captei minuciosamente cada ruído, cada passo, cada palavrão murmurado. Acho que
Jaime veio um pouco bêbado. Pelo menos, tropeçava nos móveis e por quase meia
hora manteve aberta a torneira da pia. Os xingamentos, no entanto, eram de
Esteban, que nunca bebe. Quando Blanca chegou, Esteban disse a ela alguma coisa
lá do seu quarto, e ela o mandou ir cuidar da própria vida. Depois, silêncio.
Três horas de silêncio. A insônia é a peste dos meus fins de semana. Quando eu
me aposentar, será que não vou dormir nunca?
Hoje de manhã, falei somente
com Blanca. Disse que não me agradava que ela chegasse àquela hora. Ela não é
insolente, de modo que não merecia meus resmungos. Mas acima disso está o
dever, o dever de pai e mãe. Eu deveria ser os dois ao mesmo tempo, e creio que
não sou nada. Senti que passava dos limites quando me ouvi perguntar, em tom de
admoestação: "O que você andou fazendo? Aonde foi?" Ela então,
enquanto passava manteiga na torrada, respondeu: "Por que você se sente
obrigado a bancar o mau? Há duas coisas das quais temos certeza: que temos
carinho um pelo outro e que eu não estou fazendo nada errado." Fiquei
derrotado. Ainda assim acrescentei, só mesmo para salvar as aparências:
"Tudo depende do que você entende por errado".
* * *
Esses textos foram extraídos de
A trégua, de Mario Benedetti. Um
livro excepcional, daqueles que quando a gente começa a ler não dá vontade de
parar, mas que quando chega ao final, seja por simplesmente terminá-lo ou pelos
acontecimentos derradeiros, dá uma sensação de desamparo, de algo que vai
deixar de ter ou de acompanhar, enfim, uma perda. Não sinto constrangimento em
admitir que me emocionei a ponto de deixar rolar algumas lágrimas enquanto lia
o finalzinho do livro, talvez pelo fato de eu ter me envolvido demais com o
narrador/personagem. Na verdade, sempre me envolvo, me aprofundo bastante nos
livros que leio, principalmente em romances tocantes como esse.
Narrado como diário, o autor
encontrou a forma perfeita para narrar a história de Martín Salomé, um viúvo
cinquentão, prestes a se aposentar e, por isso mesmo, atormentado e temeroso de
que a futura rotina, cinzenta e dolorosamente previsível, o consuma de forma
implacável e irremediável.
Porém, tudo isso pode mudar ao
conhecer Laura Avellaneda, uma jovem tímida e muito discreta com quem Martín
volta a descobrir o amor.
Tudo isso seria normal para
qualquer leitor menos exigente, mas as palavras escolhidas pelo autor, de forma
incisivamente desconcertante, ferina, intoxicante, e, por muitas vezes,
demolidora, demonstra o quanto sua obra é emblemática e primorosa, apresentando
um personagem central construído com esmero, um homem inseguro, passivo,
pessimista, incapaz de lidar com o tempo, lutando para não se perder em seu
próprio vazio que ameaça se avolumar a cada dia.
E é dessa forma que Benedetti
conquista o leitor mais exigente. Além de proporcionar uma profunda reflexão
sobre diversos temas, como velhice, amor, sociedade, família, amizade, trabalho
e felicidade. Principalmente por se tratar de uma linda história de amor, de
grande sensibilidade, e que derruba as barreiras do preconceito. Fazendo até
mais que isso, pois ao acompanhar o cotidiano do personagem sentimos com ele a
dor de sua busca, de sua redenção, do seu autoconhecimento e toda a sua ironia
que o acompanhou durante sua vida e que agora é dinamizada pela busca da
felicidade.
Exatamente como qualquer um
deve fazer ao se encontrar na mesma situação. Ainda mais quando reencontra o
amor, pois é nessa hora que a pessoa se rende e dá a devida trégua para uma
vida entristecida pelo tempo e pelas armadilhas que nem sempre conseguimos
escapar.
Márcio Luiz Soares