Começaram a surgir, nos embalos
da Festa Literária de Paraty (Flip), uma série de eventos promovidos por
editoras e livrarias em outras cidades do País. São lançamentos de livros,
debates, sessões de autógrafo etc. Acho ótimo, é sinal de que a ideia surtiu
efeito e está se proliferando. Mas tem uma coisa que torna a Flip incomparável
a qualquer outro evento de literatura no Brasil e no mundo, algo impossível de
substituir, que aparece discretamente representado na sigla pela letra P: a
cidade de Paraty.
Este ano, a festa completou 10
anos. Li uma matéria publicada no último 4 de julho, dia da abertura oficial,
em que diversos críticos e jornalistas discutiam seu futuro, listando prós e
contras, sugerindo novos caminhos. É fato que se encontrou uma fórmula de
sucesso. Seria a hora de mudar para não sucumbir à mesmice?
Chegaram a sugerir que a Flip
fosse transferida para uma cidade maior, já que Paraty mal comporta o
contingente de visitantes. Sabe, eu aceitaria várias mudanças numa boa, sou a
favor de experimentar. Mas jamais trocaria aquele local. Porque, para mim,
Paraty traduz perfeitamente a essência da literatura, que é viver outra vida em
outro mundo.
Quem participou alguma vez da
Flip entende o que estou dizendo. Tentarei explicar, em poucas palavras, para
quem nunca foi.
A festa começa sempre numa
noite de quarta-feira, com solenidades e show de abertura. Até esse momento, já
li a programação inteira, acompanhei as notícias no site, comprei ingressos
para uma ou outra mesa, enfim, estou ansioso. Quando soam as primeiras notas no
palco, ainda estou em São Paulo, trabalhando. Chegarei a Paraty apenas no
sábado, quando muita coisa já aconteceu. Infelizmente, é o máximo que posso
fazer.
Tudo bem, não tem problema,
entro no carro e parto cedinho. A estrada oferece paisagens maravilhosas. O
frio vai ficando para trás, o sol do Rio de Janeiro começa a dar as caras, sei
que estou perto.
Este ano, havia obras na
estrada. Trânsito parado, sensação de que não vai dar tempo. Até aqui? Ai,
ai...
Chego em cima da hora,
estaciono onde dá e aperto o passo para alcançar a tenda onde ocorrem os
debates. Então, acontece. Sou dominado pela magia que só a cidade de Paraty
tem. Ao pisar nas ruas do centro histórico, pavimentadas com aquelas pedras
enormes e irregulares, as casinhas pintadas de branco, os batentes coloridos,
um monte de gente papeando com alegria no rosto e sacolas na mão... a realidade
se transforma. É a tal essência literária de que falei.
Sou imediatamente transportado
para outro mundo. Diminuo a velocidade, respiro fundo, sinto cheiro de praia e
livro no ar. Cedo à ficção.
O tempo se espreguiça em
Paraty. Vira página por página, vagueia sem compromisso pelas linhas. Conheço a
cidade desde criança, mas ainda me perco em suas ruas. Elas foram feitas para isso.
É fabuloso.
Assisto aos debates, que têm
sempre um tom gostoso de informalidade. Os autores falam de seus livros, do
método de escrita, do que têm lido ultimamente. Falam também da gozada — e
perigosa — experiência de beber caipirinha e depois sair para um passeio.
Invariavelmente alguém se perde. Ou acaba virando o pé, perdendo o chinelo e
caindo de bunda. Ouvi isso da boca de diversos estrangeiros.
Diz a lenda que a cachaça é que
dá o molejo para pular de pedra em pedra sem se machucar. Pode ser verdade, não
faltam cachaçarias por ali. Ainda assim, prefiro deitar os olhos no chão.
A plateia faz perguntas e,
terminado o bate-papo, saio à caça de um lugar para almoçar. Tem sempre um
restaurante charmoso à espera. Aproveito para dar uma volta, ver as crianças
brincarem com os livros que pendem das árvores, na praça, e com os bonecões
feitos com papel machê, inspirados em faz de conta.
Depois do almoço, a sobremesa
vem trotando pelas ruas em carrinhos de doces típicos. Pé-de-moleque,
quebra-queixo, cocada, bolo de mandioca. Bate um sono danado. E também uma
vontade de pertencer ainda mais àquilo tudo, de ficar ali para sempre.
Tem muito mais na Flip. Lojas,
estandes de editoras, shows, bares animados, cafés, saraus, artistas de rua...
Programação para todas as idades. O que eu mais gosto, no entanto, é deixar o
mundo real durante algumas horas para participar daquela fantasia coletiva, em
que as pessoas se divertem em torno de um bem comum: o amor à literatura.
Assim que voltei para casa, li
um artigo em que Liz Calder, criadora do evento, se dizia muito satisfeita e
que não pretende fazer mudanças drásticas. Para ela, a Flip atingiu o tamanho
certo, não precisa crescer mais. O que precisa haver é outras festas similares
no Brasil.
Reconheço o esforço de quem lê
em tempos de internet, TV, congestionamentos e horas extras. Quem contraria a
falta de paciência, a ansiedade por informação, o conhecimento objetivo, a
velocidade acelerada do mundo real. A ficção tem seu próprio tempo, assim como
Paraty. Também como Paraty, ela exige que você se deixe envolver, que entre no
ritmo. Caso contrário, você tropeça e cai de volta na banalidade do dia a dia.
Edu Almeida
publicitário, crítico e
historiador da arte
Jornal Correio Popular/Editoria Caderno C/Campinas 26/7/2012
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Imagens: 1-Augusto Gomes / 2–Carol
Lobo