terça-feira, 22 de julho de 2008

A moça e o motoqueiro


A rua escura. Postes isolados quase não fazem diferença. A espera. O fluxo de carros é inconstante, às vezes ouvem-se gritos. Duas pessoas esperam o ônibus, uma delas em pé.

Ao longe, a baiana recolhe seu tabuleiro.

Mãos no queixo, pés balançados, quase trêmulos da mulher que, olhando para o caminho, espera. Com olhares voltados para a mesma direção, ambos queixam-se isoladamente. Um estalar de bocas, um bater de saltos, um balançar de chaves. Cinco minutos sem que passasse nenhum veículo. O silêncio se quebra com o roncar da moto, animal aéreo entre elefantes. Mas, naquele momento, o frio pareceu aumentar.

O ronco do motor alcançava decibéis inacreditáveis, anunciando seu poder ante a noite vazia. Ameaçador, parecia perceber seu poder frente a todos. Sabia-se malquisto, sabia-se temido, sabia-se ameaçador. O piloto acelerou novamente alcançando mais uma distância. E ao cruzar com as pessoas do ponto de ônibus, com seu capacete e arrogância gritou: “Lôra!!”. A moça olhou. E cruzaram olhares que não se viram. A face do motoqueiro era uma incógnita, assim como o nome da moça.

E naquele instante era o que tinham um do outro: uma visão e uma alcunha. A moça o percebia numa fração de segundo eterna por sobre o capacete e ele batizou-a com o óbvio: Lôra. Imaginando-se em desvantagem, ela pensou, porém, que ele tinha dela, em quantidade, o mesmo que ela dele. Afinal, este não era seu nome. Tinham um do outro o momento apenas, a visão, a percepção de uma presença, de uma existência antes desconhecida. A ansiedade do motoqueiro valeu-se do contato fático, cujo artifício apenas deu-lhe a certeza de também saber-se visto.

Segundos depois, a lembrança da moto era apenas timpânica. A moça, porém, não mais batia saltos, nem balançava chaves. Seu ônibus surgia então como uma nova ilusão.

Paula Dórica

5 comentários:

Anônimo disse...

Que história maravilhosa!! E pensar que uma situação parecida aconteceu comigo!! rs abraços
Samantha

Saco de Bagulhos disse...

Imagino que esta situação não é incomum. O que ocorre é que a sensibilidade, a percepção e o nível da profundidade da situação, tudo isso muito bem descrito pela Paula, não é captada pela grande maioria das pessoas.

Ana disse...

Concordo com o Márcio, eu também não tinha me dado conta!! rs Essa Paula é uma ótima narradora, descreve com muita sensibilidade o que cerca o ser humano. E nos presenteou mais uma vez com seus belos textos. Feliz Paula, feliz Blog. Ambos estão de parabéns. E ainda li com "trilha sonora" - ainda rolava o clipe do Tears for Fears! Beijos

Ká Sue disse...

Só olhos atentos e sensíveis como os de Paula têm o poder de perceber a beleza por trás de situações tão comuns, corriqueiras. Continue nos presenteando! Amo suas crônicas!
Bjo.

Unknown disse...

Essa autora tem uma percepção aguçada!! Que coisa!! Muito bom! Tem mais?