“Quase tenho medo dele: não
pensará em me perder? Para onde me arrasto? Eis que meu cérebro começa a
abrigar noções irracionais de pecado, de queda, de vício, de perdição.”
Christiane
Rochefort, in O repouso do guerreiro.
Recentemente, ao rever os
livros da minha biblioteca, numa pequena arrumação insólita e praticamente
improdutiva (improdutiva de tanto que eu mesmo me interrompia para ficar
“namorando” os livros lidos e não lidos). E ao me deparar com O Repouso do Guerreiro, de Christiane Rochefortei, fui levado a
fazer uma comparação: esta
admirável escritora é, para mim, quase que a Clarice Lispector da França. Esse
"quase" não permite que exista outra Clarice Lispector. Claro. Ela é
única.
Este ótimo romance conta a
história de Geneviève, uma jovem parisiense, estudante de psicologia muito
educada e elegante, que se apaixona perdidamente por Renaud. E é essa paixão
que a faz viver uma grande desilusão.
Renaud é um ex-soldado que
perdeu a esperança após o bombardeio de Hiroshima e que dez anos mais tarde
tenta se matar em um hotel de uma pequena cidade. Geneviève o encontra
acidentalmente, salva sua vida, e torna-se sua amante. E com ele tem seus
primeiros orgasmos.
Mas nem tudo é bonito e
prazeroso nesse relacionamento: Renaud é uma pessoa muito atormentada,
exigente, desprezível e rejeita o mundo como um todo. Além de ser violento e
impedir Geneviève de rever amigos e a família. Ele acredita que Geneviève é
guiada principalmente pelo apetite sexual e quer forçá-la a admitir. E isso faz
com que se refugiem em delírios, mas é nessa devassidão que um se anula diante
do outro.
A história é centrada na
relação ambígua dos dois personagens principais. Não podemos deixar de
perguntar por que Geneviève se agarra tão teimosamente a um personagem tão
desprezível que inadvertidamente recusa o amor que recebe dela e que ainda
insiste em afirmar que ela confunde o desejo sexual com amor sincero justamente
por estarem intimamente ligados. O que nos leva a pensar no que exatamente ele
teme. Ser pego em uma rotina? Teme ser pertencido a alguém? Tornar-se um
hipócrita? No entanto, seja o que for que o impede de se entregar ou de deixar
a jovem viver serenamente (sozinha, claro), fica evidente que sua própria
arrogância não o impede de se odiar, sendo que é isso mesmo que o desconforta.
E pra piorar faz questão de levar sua amante com ele em sua podridão
desmesurada.
No decorrer da narrativa o que
vemos, e o que nos revolta, é a decadência de uma mulher que faz tudo por amor
e o quanto é fortemente afetada pela sua relação emocional e sexual, se
afastando do seu mundo, correto e muito seguro, para embarcar numa submissão
que aparentemente não terá fim. Tudo nos leva a imaginar que ela vai aceitar o
pior e chegar ao fundo do abismo físico e moral.
Até que ponto uma mulher pode
se perder em nome de uma paixão? E, afinal, qual é a tênue divisão entre moral,
obsessão, decadência moral, dignidade, submissão e prazer? Aquela doce loucura
deliciosa de se viver é sempre fascinante e intrigante, mas qual é o limite?
O título e os acontecimentos
desse ótimo romance, que exalta a redenção, de forma alguma chega a enganar os
leitores: a mulher é, sem dúvida alguma, o perfeito descanso do guerreiro.
A recíproca não é verdadeira.
Márcio Luiz Soares
*
Confira um trecho do livro
aqui.
* * *
Imagem: frame do filme francês
homônimo. O romance foi adaptado para o cinema em 1962, com direção de Roger
Vadim e com a participação de Brigitthe Bardot no papel principal.
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