sábado, 18 de dezembro de 2010

Mal traçadas linhas





A primeira vez que vi Glorinha, estava na casa da Ritinha. Usava fitas nos cabelos e seus dois olhos verdes saltaram sobre os meus. Foi um encontro casual e eterno. Não consegui ficar em sua presença mais do que um minuto. Foi rápido. O mundo desabou ali mesmo, na frente de todo mundo. Corri para o bardo Tião. Ritinha foi atrás querendo saber o que houve. Eu perdi a respiração e só soube dizer que não houve nada.

A partir daquele dia, seus grandes olhos verdes me perseguiam e os via em todos os olhos, seu rosto sorria em outros rostos e as fitas estavam em todos os cabelos. Glorinha, certamente, era um anjo – (mau, às vezes) – porque se multiplicava em mim e derramava em todo meu corpo – (às vezes bom) – quando penetrava sorrateiro em meu quarto e preenchia meus sonhos.

Glória vivia sempre em mim. Era uma outra pessoa que tinha adquirido, ou o travesseiro que faltava. E Glorinha tornou-se uma obsessão. Ela corria em meu sangue. Acordava comigo e não se separava mais. Tomava o café da manhã, almoçava, jantava e era a principal artista de meus sonhos. Até a bola de futebol passou a se chamar Glorinha e foi por isso que resolvi ser goleiro. Não admitia chutar Glorinha. Preferia agarrá-la. Senti-la em meus braços.

Na escola, a professora era Glorinha, as meninas eram Glorinhas, até a dona Maria da cantina era Glorinha. A imagem de Glorinha me transbordava e fluía em todos os poros. Refletia nos óculos, nos espelhos, nos vidros, nas garrafas de refrigerante. Glorinha me inundava com sua presença, com seus olhos, pelos e cabelos. Glorinha me sugava, me surrava, incomodava. O seu nome me enchia a boca: glorinha, glória, glória minha, Glorinha era a minha glória.

Glorinha domingava em mim e foi num domingo que consegui revê-la. Missa das 10, eram 9h45min. Perambulava no adro da igreja quando Glorinha apontou na esquina. Fiquei em pânico. Minhas pernas tremeram. O coração disparou. Me escondi atrás de uma árvore.

Ela vinha acompanhada de outras meninas e falava sem parar. Estava radiante e vestia vermelho. Ela passou perto da árvore onde estava. Não me viu. O medo e a ansiedade foram tantos que virei raiz, folha, tronco. Era outono e me despenquei lá de cima. Tinha virado uma folha. Uma folha seca. Mas um vento bom não me deixou perdido, à mercê de passos desavisados ou de alguma roda descuidada. A aragem dominical me levou até o templo e me alojou atrás de Glorinha. Se a morte era a glória celeste, Deus em sua infinita sabedoria, provavelmente, não conhecera a Glória terrestre. E ela estava ali, no templo. Perto Dele, orando a Ele, falando a mesma língua Dele.

E quando a missa terminou, ela saiu como entrara, ruidosa. Mas percebi que ela olhou para um rapaz. E aquilo foi um punhal, uma faca de muitos gumes. Fiquei arrasado e meu primeiro ímpeto foi matar aquele sujeito.

E meu dia transcorreu violento. Não almocei nem fui à matinê. Conheci o ciúme.

A noite foi infernal. Arquitetei mil planos para abordá-la. Imaginei cenas, encontros.

Construí diálogos. Ouvi a sua doce voz penetrando em meus ouvidos e dizendo sim, sim, sim. Neste momento virei palavra. E naveguei todo o quarto. E a palavra Glorinha tinha asas. Era um pássaro de mil cores. E sobrevoei o quarto várias vezes e esse pássaro era Glorinha que voava em mim.

O sono veio tarde. Delirei. Glorinha transformou-se em Julieta. Depois em Myriam Lane, em Narda e desfilou em mim com vários nomes. Às vezes tornava-se Rapunzel e ficava na torre inexpugnável, pedindo socorro, lançando as tranças para o príncipe encantado. E este príncipe nunca era eu, pena.

Nesta mesma noite, caminhamos de mãos dadas. Estávamos em silêncio, mudos. O cenário era um pátio de longas paredes que não acabava nunca. Éramos os únicos naquela paisagem. Aproximei-me de seu rosto e ela recuou, negaceou, mas insisti. E quando lábios e olhos se tocaram, tudo evaporou. Acordei.

E Glorinha continuou no ofício de me percorrer, de me perseguir. De me domingar. E Glorinha me dominou durante muito tempo, quando uma idéia luminosa glorificou todo meu sofrimento: escrever uma carta, era a saída.

Rabisquei papéis. Rasguei. Não consegui escrever além de seu nome. Mas o Divino Espírito Santo, a terceira pessoa (ou a segunda?) da Santíssima Trindade, me encheu de luz: na segunda prateleira da estante de meu irmão, descobri um livro, o maior de todos: Cartas de Amor, roubei-o.

Na página 27 estava a minha declaração, a carta que pedira a Deus. O autor era um gênio, descobriu as minhas palavras. Era assim:

Estas mal traçadas são endereçadas àquela que torna meus dias como este céu de abril

(abri a janela e o céu estava horrível, ia chover, e era maio)

você é a Dulcinéia que tanto almejo

(perguntei ao Bolinha quem era Dulcinéia e ele me disse que achava que era a miss Brasil)

sou um cavalheiro errante

(troquei “errante” por “certeiro” porque ela podia achar que era um cara cheio de erros)

te vejo em todos os lugares. Chegou a hora de unirmos nossas solidões.

Teu

Romeu

Assinei, molhei as pontas do envelope com cuspe, surrupiei uns trocados na bolsa da mãe, comprei selo e coloquei a carta no correio com o coração ansioso.

Um mês depois, chegou a carta de Glorinha. Fui com sede ao pote. Abri sem cuidado. E fui lendo:

A resposta está na página 40, do mesmo livro.

Tua

Julieta


Ronald Claver

[A última sessão de cinema, 1986]

Um comentário:

Lídia Borges disse...

Dulcineia ou Julieta é uma sortuda"

Gostei do texto.

L.B.