Deixe-me
sofrer se você quiser
pode
me deixar
despertado
do sono.
Vallejo
Provido de seu alimento
intelectual, atira-se à cama. Ei-lo ao abrigo. Sua vida limita-se a ações
simples: dormir, comer, beber, fumar, fazer amor. Sua assiduidade para comigo,
se bem que tome grande parte do dia e da noite, restringe-se a meu corpo. O que
sabe de mim, é aquilo que consegui encaixar na conversação, eventualmente; logo
que falo de mim, que quero exprimir uma ideia, tenho a impressão de nadar no
seco. Possuo apenas a existência material. Não ouve o que digo, olha-me; é uma
impressão bastante curiosa, como se eu existisse ao lado de mim. Encolhido em
sua liteira, observa-me, e, sem levar em conta hora e circunstância, quando
passo ao seu alcance, agarra-me, mesmo se estou passando o aspirador ou se
tenho nas mãos os quatro cinzeiros. Foi assim que quebrei o quinto.
Em silêncio, puxa-me para a
grande cama que é o seu domínio, o lugar onde dispõe de suas forças como Anteu
e a terra. Ele, tão frágil em pé, que não se pode manter erguido e dir-se-ia
arrastar-se de uma estação à outra, revive uma vez deitado. Essa cama! Mundo
completo, fechado, segregado de tudo, tem sua vida, sua paisagem de cinzeiros e
livros negros; seu próprio sol: a lâmpada que Renaud conserva acesa mesmo
durante o dia, como se não soubesse que existe a claridade diurna; sua fauna: o
grande animal que mora encolhido, e o pequeno que gravita em redor e se deixa
cair na armadilha, vítima continuamente devorada e complacente.
Com um vigor que raia pelo
sistema, pela tática militar, como uma máquina de guerra, abate, uma a uma,
minhas defesas solidamente dispostas. Se distingue um receio em meus olhos, um
arremedo de fuga, uma crispação, é por aí que ele vai, é por aí que desfecha o
ataque, e luta até minha rendição; a rendição, essa tem que ser total. Nada o
incita mais que um trêmulo "não"; um não nada mais é que algo que
deve ser transformado em sim. Meu Deus! será possível que haja tantos nãos no
corpo de uma mulher? Como eu fazia disso uma ideia limitada! "Mocinha de
princípios, vem cá." Um princípio deve ser cercado. Pudor, para ele, significa:
qualquer coisa lá por baixo. Se resisto demasiado, renuncia com uma indiferença
desdenhosa, mais dolorosa que o mais doloroso de seus empreendimentos, e
mergulha na leitura de Peter Cheney. Perdida, despedida por impotência,
envergonhada, será preciso que eu dê o primeiro passo e ofereça aquilo que
negava. Pouco a pouco, desmantelada, avanço pelo país desconhecido de meu
corpo, e avalio, para meu espanto, como eu vivia longe de mim mesma. Mas o quê,
podia desconhecer-me a tal ponto? Tudo jazia ali, aquilo que Renaud, quase à
força desaloja, teria eu deixado dormir a vida inteira? Essa reflexão me
confunde, não sei concluí-la, leva-me à beira de um abismo, penso em Claude, em
Pierre, na maioria das pessoas que conheço e que são como eu, ou melhor, como
fui: será possível que todo mundo, essas pessoas empertigadas que não gostam de
falar "dessas coisas", que lhe dão as costas, vigilantes em
defenderem-se delas, e que, de resto, a elas se entregam facilmente - como eu
chegava até ali, sem luta, através de um sistema de viseiras, uma modalidade de
esquecimento -, que será possível que essas pessoas passem ao largo de si
mesmas, viviam serenamente nessa letargia dos sentidos de onde, dificilmente,
sob a férula de uma chantagem amorosa, saio como de um longo sono? Isso dá uma
estranha medida do uso que fazemos de nós.
Ainda estou longe de ser
completa; o essencial me escapa. Incomodam-se as próprias atenções de Renaud,
analiso-me demais, perco-me na procura, envergonham-me seus esforços
infrutíferos sob seus olhos sempre abertos, tenho medo de desgostá-los com
minha inaptidão para o prazer, eu que outrora - outrora: ontem - enfadava-me
com o prazer. Mas Renaud parece dispor de uma paciência infinita; esse monstro
de egoísmo, que não se preocupa com amar, é o mais generoso dos amantes, no
amor nunca pensa em si mesmo, e, para cúmulo, reserva seu próprio prazer para
quando já estão esgotados os que pode me proporcionar. Se não ama, muito menos
se ama é preciso fazer-lhe justiça. E esse aprendizado pelo qual ele me faz
passar não é para seu deleite, mas para meu governo: não são lições de erotismo
que me dá, mas uma única lição; se amas, ao menos sê capaz dos atos do amor, ou
então, cala-te. Então, uma espécie de honra convida-me a me abandonar sempre e
cada vez mais.
Honra: honra que ontem eu teria
chamado precisamente desonra. Tudo vacila, onde estão os valores? O amor se
resolveu, fez deles um caos; não sei se decaio ou se me formo, não tenho mais
moral, não estará justamente aí armadilha de que se fala, essa demência com a qual,
segundo se diz, o amor costuma cegar, não estarão aí os extravios dos sentidos?
Ora tenho vergonha do que era, ora do que passo a ser: não sou uma escrava? Ou
serei uma verdadeira mulher? Quando estou presa à contemplação dos lábios de
Renaud, possuída de desejos inconfessáveis que ele imediatamente percebe, ou,
se a um sinal dele, dispo-me e me exponho às suas exigências, ou se ouço as
queixas que ele não me permite abafar - será isso sensualidade natural, ou
serão aberrações perversas, enfim, serei ainda normal, ou já estarei viciada?
Esse prazer, ao mesmo tempo demasiado forte e parcial, o único ao qual ainda
aquiesço, entorpece-me e obceca. A necessidade apodera-se de mim tão
violentamente, em meio a ocupações tão pouco propícias, que cuido descobrir o
velho sentido da tentação: de fato mais forte que a gente. Renaud me vê, minha
face em fogo, pronta a passar por onde ele quiser, ele sorri, e esse sorriso
não merece outra qualificação a não ser a de diabólico. Quase tenho medo dele:
não pensará em me perder? Para onde me arrasta? Eis que meu cérebro começa a
abrigar noções irracionais de pecado, de queda, de vício, de perdição.
Quando deixo essa cama, esse
mundo sem tempo, onde o dia e a noite se entrelaçam e onde nenhuma ordem,
nenhum indício, nenhum apoio aparecem, verdadeiramente é de outro planeta que
venho, e não mais reconheço este aqui.
Não me lembro de nada. Viro-me,
os braços inertes - onde estava eu? Esse homem quebrou o tempo, dele fez uma
grande noite uniforme, interrompido apenas pelos chamados que vêm de fora: é
minha mãe, é Pierre, é Claude que se inquietam, e ouço-lhes as vozes ao longe,
como quando estive muito doente: do fundo da indiferença fisiológica é que os
rumores da vida mais atingem. É verdade, estou doente, desfiz-me do tempo,
enveredei pelo sombrio reino de Renaud, que morreu. Vivo com um morto que me
aspira a seu lado.
Após essas viagens necessito de
horas, ou talvez dias, não sei, para me refazer. Eu que, quando bandeirante era
chamada "Abelha Laboriosa"! Acontece que, saindo para o almoço,
deparo-me com a noite lá fora, dir-se-ia que Renaud lança um sortilégio sobre
os relógios: desmantelam-se, um após outro. E, certa manhã, vendo minha árvore
sem folhas, dou-me conta de que, também eu, esqueci meu jardim. Começa a trabalhar-me
o medo de haver perdido a matrícula, e de quase ter perdido o mundo; é como se
eu estivesse num convento. Claude me escreve: julga-me doente. Minha mãe,
ultrajada, manifesta sua existência por meio de um silêncio total dos mais
opressivos. Por fim, Pierre agarra o inimigo de frente, interroga: "Não me
esconda a verdade, peço-lhe" - diz-me, certa noite, ao telefone. "Já
compreendi que se passa alguma coisa." Respondo que sim, num suspiro.
"Algo grave?" Sim... Não era nada fácil explicar ao telefone, com
Renaud ali. "É preciso que me diga imediatamente. "Escute, quer me
encontrar amanhã?" "Você acha que, agora, vou deixar passar mesmo que
seja uma noite? Venha imediatamente." Vi, afinal, com um pouco de clareza,
o que estava fazendo, e concordei com um encontro em Duroc, de onde ele me
telefonava.
- Tenho que sair por um
momento.
Renaud, que, entretanto, ouvira
o bastante para compreender, emite um grunhido indiferente: com ele, gozo de
minha plena liberdade. Se anunciasse: tenho que ir encontrar-me com um novo
amante, ele não teria outra reação. Está lendo Hadley Chase. Pergunto-me se o
devo beijar antes de deixá-lo.
- Até logo, Renaud...
Ergue o grande nariz, faz um
aceno e volta a abismar-se. Como se eu fosse buscar o jornal.
*
Extráido do livro O Repouso do
Guerreiro, de Christiane Rochefort.
***
Ilustração: Café (1949). Quadro de Leonard Tsuguharu
Foujita (Japanese, 1886-1962).
Nenhum comentário:
Postar um comentário