segunda-feira, 31 de maio de 2010

Eu sei, mas não devia





Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti

domingo, 16 de maio de 2010

Dois





Há dois anos eu tive uma vontade grande de compartilhar as coisas que gosto de ler, de ver, de fazer, espalhar uma ideia ou outra ou alguma opinião a quem quisesse ver. Ou mesmo servir de um espaço pra registrar tudo que acho interessante.

No começo, quanta animação! Não sou dado a escrever tudo que me dá na telha, mas tinha uma dica ou outra pra dar. Bom, ainda tenho... E aos montes! Mas a vontade de escrever depende do tempo, da quantidade de coisas bacanas que passam na TV, e das conversas animadas nos botecos, entre tantas outras distrações que vivo arrumando pra mim.

E assim, o blog foi ficando pra escanteio.

Bom, melhor assim do que ficar postando um monte de bobagens, ou colocando coisas idiotas e sem nenhum tipo de mensagem, como que numa atitude desesperada, só pra ter conteúdo.

Desde o início, não se tratava de quantidade, mas sim de qualidade.

E agora to aqui, chateado por não ser mais assíduo. Aliás, já reclamei disso antes e parece que ainda não aprendi...

Mas sei que devo tentar dar continuidade, considerar como compromisso. Pôxa, nem é tão difícil assim.

Nesses dois anos de postagens de todo tipo e interesse, legais pra uns, bobinhos pra outros, apareceram uns doidos, alguns leitores fiéis, e muitos deles elogiam ou me cobram postagens por e-mail, pelo Orkut, pelo Messenger, pelo telefone ou pessoalmente puxam a minha orelha. Embora nunca tenha tido o objetivo de atrair muitos leitores, considero muito legal esse reconhecimento. Atingir um determinado público, mesmo que pequeno, com nossa escrita e fazê-los sentirem o que sentimos dá uma satisfação gostosa.

Legal saber que tem gente que se identifica com meus textos, minhas humildes poesias, minhas dicas ou qualquer outra coisa presente neste blog.

Agradeço a todos que perdem alguns minutinhos de suas vidas tão preciosas e tentam saborear o que aqui deixo pra ser degustado.

Valew!