quinta-feira, 30 de outubro de 2008

As Palavras






As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpas. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes.

Algumas palavras sugam-nos, não nos largam... As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas fazem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras.

E há os discursos, que são palavras encostadas umas às outras, em equilíbrio instável graças a uma precária sintaxe, até ao prego final do disse ou tenho dito. Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e fecham sessões, se lançam cortinas de fumo ou dispõem bambinelas de veludo. São brindes, orações, palestras e conferências. Pelos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias. E depois as palavras dos discursos aparecem deitadas em papéis, são pintadas de tinta de impressão - e por essa via entram na imortalidade do verbo. E as palavras escorrem tão fluidas como o "precioso líquido". Escorrem interminavelmente, alagam o chão, sobem aos joelhos, chegam à cintura, aos ombros, ao pescoço. É o dilúvio universal, um coro desafinado que jorra de milhões de bocas. A terra segue o seu caminho envolta num clamor de loucos, aos gritos, aos uivos, envoltos também num murmúrio manso, represo e conciliador...

E tudo isso atordoa as estrelas e perturba as comunicações, como as tempestades solares. Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não ouça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. Daí que seja urgente moldar as palavras para que a sementeira se mude em Seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do ato.

Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que não se ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. Caem sobre ele as palavras. Todas as palavras. As palavras boas e as más. O trigo e o joio. Mas só o trigo dá pão.


José Saramago, do livro de crônicas Deste Mundo e do Outro
[Ilustração: The wall of no-words, de Alberto G. Baccelli]

sábado, 25 de outubro de 2008

Vôo






Alheias e nossas, as palavras voam.
Bando de borboletas multicores, as palavras voam
Bando azul de andorinhas, bando de gaivotas brancas,
as palavras voam.
Voam as palavras como águias imensas.
Como escuros morcegos como negros abutres, as palavras voam.
Oh! alto e baixo em círculos e retas acima de nós,
em redor de nós as palavras voam.
E às vezes pousam.



Cecília Meireles

sábado, 18 de outubro de 2008

Sonho Real





Imaginação à flor da pele
Um mundo surreal
Discos voadores passam
Terrestres amáveis
Em paz.

Crianças sem medo
Jornal sem sangue
As grades, os muros, lembranças.

Novos dicionários
Sem palavras vermelhas
Sem linhas imaginárias
Sem dúvidas cruéis.

Eu
Você
Todos vivendo um único sonho
Um sonho de paz.

Passa um homem
Sorrindo, acenando
Verdade no olhar
Sem medo, rimos juntos.

Sinto um toque.
De olhos abertos
Vejo você.

A realidade me volta
Nua, crua e única
Finalmente,
Entrego-me inteira
Ao destino, à vida
A esse sonho tão real.


Kátia Martins



quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Ao mar





Como é longa essa viagem de volta. Os fins de tarde sobre o mar e essa passagem do sol poente à lua são os únicos momentos em que sinto o coração mais leve. Terei sempre amado o mar. Ele terá sempre apaziguado tudo dentro de mim.

Terrível mediocridade deste meio. Até agora não me sujeitei uma única vez à mediocridade que podia me cercar. Até agora. Mas aqui essa intimidade vai longe demais. E em todos, ao mesmo tempo, esse algo que poderia ir longe, se apenas...

Dois seres jovens e belos começaram um idílio neste navio, e logo uma espécie de círculo mau fechou-se a sua volta. Esses começos do amor! Eu os amo e aprovo do fundo do coração - até mesmo com uma espécie de gratidão pelos que preservam, neste convés, no meio do Atlântico reluzente de sol, a meio caminho de continentes loucos, essas verdades que são a juventude e o amor. Mas por que não chamar pelo nome também essa inveja que sinto no coração e o desejo tumultuado que se apodera de mim no sentido de redescobrir o coração impaciente que eu tinha aos vinte anos. Mas conheço o remédio, vou olhar para o mar durante muito tempo.

Tristeza por me sentir ainda tão vulnerável. Daqui a 25 anos, terei 57. Portanto, 25 anos para fazer minha obra e encontrar o que procuro. Depois, a velhice e a morte. Sei qual é o mais importante para mim. E encontro, ainda, meio de ceder às pequenas tentações, de perder tempo em conversas vãs ou passeios estéreis. Dominei duas ou três coisas em mim. Mas como estou longe dessa superioridade de que tanto necessito.

Maravilhosa noite sobre o Atlântico. Essa hora que vai do sol desaparecido à lua apenas nascente, do oeste ainda luminoso ao leste já escuro. Sim, amei muito o mar - essa imensidão calma - esses sulcos recobertos - essas estradas líquidas. Pela primeira vez, um horizonte à altura de uma respiração de homem, um espaço tão vasto quanto sua audácia. Sempre estive dilacerado entre meu apetite pelos seres, a vaidade da agitação e o desejo de me tornar igual a esses mares de esquecimento, a esses silêncios desmedidos, que são como o encantamento da morte. Tenho o gosto das vaidades do mundo, dos meus semelhantes, dos rostos, mas, fora do meu tempo, tenho uma regra própria, que é o mar e tudo que se lhe assemelha neste mundo.

Ó suavidade das noites, em que todas as estradas oscilam e deslizam por cima dos mastros, e esse silêncio em mim, esse silêncio, afinal, que me liberta de tudo.


Albert Camus

* * *

Este é um trecho do livro que acabei de ler, Diário de Viagem. Gosto das obras de Camus, um pensador conhecido como o filósofo do absurdo. Espero poder comentar sobre seus livros neste espaço. Se nunca leu nada dele, sugiro que não começe pelo Diário de Viagem. Justamente por ser bem intimista.


segunda-feira, 6 de outubro de 2008

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O rádio





O rádio

Estação 1
Cheiro de café e da farda do colégio passada a ferro.
O locutor diz que a libriana amiga terá um ótimo dia.
Céu limpo, sol morno.
E o refrão:
Sociedade, Salvador, Bahia.

Estação 2
Reinaldo Fontes diz bom dia no rádio da cozinha.
Marinalva suspira com a voz grave de seu companheiro matinal.
O galã deve ser alto, bom partido e deve gostar de cinema.
Na próxima promoção “Almoce com o Reinaldo”,
Ela não poderá errar o nome da música.

Estação 3
E agora que a verdade entra em sua casa, amiga ouvinte,
Salve sua família, salve sua alma.
Deixe Deus operar em sua vida.
Pare de sofrer!!!!

Estação 4
No fogo, o arroz fumegante está quase pronto.
O rádio irrequieto não se decide,
Movido a dedos nervosos.
Ah aquela música que não vem...

Estação 5
A cortina branca é jogada para o alto.
A porta é empurrada pela brisa.
João Gilberto canta,
Sopradamente, dolentemente,
Sobre o silêncio dos móveis.

Estação 6
Chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiziumzium
Chiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii


Paula Dórica