domingo, 20 de fevereiro de 2011

Tenho um plano





Tenho um plano

Para cada dia da semana

Para disfarçar cada engano

Cada enguiço

Preguiça

Premissa

Percalço

Que por acaso

Me assalte

Te asfalte

Feito esmalte

Que fixa

Asfixia

Durante estes sete dias

Que se repetem por covardia



Paula Taitelbaum


quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Contextualize





“A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás; mas só pode ser vivida olhando-se para frente.”


Soren Kierkergaard


* * *

Edição da imagem: Matheus Castro.


domingo, 13 de fevereiro de 2011

Gabriela Bautista





Noite. O calor parece não dar trégua nenhuma. Tampouco a poeira. Calor e poeira se grudam nos corpos. As peles transpiram terra. Redemoinhos de borrachudos e mosquitos flutuam no ar imóvel e fervente. Zumbem junto aos ouvidos e picam, implacáveis. Um trio de coiotes uiva no morro. As cascavéis se retorcem no cascalho ardente dos caminhos. Os bichos se abrigam embaixo das algarobeiras, fugindo de um sol que ainda perdura no escuro. Ao longe, o rio e seu murmúrio sossegado. E o calor, o maldito calor, avassalando tudo.

Gabriela Bautista não dorme, a angústia não deixa. Nem o medo. Inquieta, aguarda o regresso do marido a qualquer momento para cobri-la de pancadas e, muito provavelmente, matá-la. Não tem para onde fugir nem onde se esconder. Mantém a leve esperança de que ele não saiba de nada, mas não, a esta hora já deve ter sido informado de sua infidelidade. Se está demorando a chegar, é porque foi cobrar do Cigano a afronta.

A porta range. Gabriela Bautista se encolhe atrás da cama. É ele, e vai matá-la. Um minuto se escoa lentamente, depois mais um. O rangido não se repete. Gabriela Bautista apóia a cabeça sobre a cama e fecha os olhos. Transpira um suor que vem do âmago. O mesmo suor que a percorrera na noite anterior, quando uma luz brutal a descobrira esfregando sua carne à carne do Cigano. Uma luz sem nome, insistente, calada, que os cegou no meio da noite e esquadrinhou sua nudez.

- Boa-noite – gritou o Cigano à luz muda.

Não houve resposta, só o silêncio e a luz. Gabriela Bautista se escondeu atrás do Cigano e transpirou medo.

- Boa-noite – repetiu o Cigano.

Nada, luz e silêncio, e a fria sensação de estarem sendo tocaiados pelo silêncio.

O Cigano adivinhou na escuridão o reflexo do cano de uma arma. Empurrou Gabriela em direção ao morro e ambos começaram a correr, e a luz atrás deles, e sabe Deus quem atrás da luz. Correram tanto quanto puderam, tropeçando, ferindo os pés nos espinhos, rasgando braços e pernas, até que a luz deixou de penetrar a espessa ramagem do matagal. Encolheram-se numa vala, embaixo de uns arbustos, respirando agitados, inundados pelo ar quente da noite. Não falaram uma só palavra. Ela se agarrou a ele e ele a beijou e acariciou e Gabriela Bautista se deixou beijar e acariciar e beijou e acariciou, cada vez mais temerosa de si mesma.

Fizeram amor. Ao terminarem, o Cigano se levantou, fechou a calça e partiu por entre o matagal. Ela ficou quieta, impregnada de sexo e medo. Ouviu a distância o ronronar da caminhonete do Cigano, que se afastava pela trilha. Ficou escutando até que ele se perdesse na madrugada. Então se ergueu, sacudiu o vestido e ajeitou a roupa. Começou a andar, com passo pesado. Tinha sido descoberta e não sabia para onde fugir. Chegou à sua casa e se escondeu no único lugar no qual achou que poderia se esconder: atrás da cama, onde passou todo este domingo e de onde escuta agora a porta ranger. Percebe quando ela se abre e vê entrar Pedro Salgado, seu marido.


* * *

Extraído do livro Um doce aroma de morte, de Guillermo Arriaga.

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Imagem: recorte de cena do filme A teta assustada (direção: Claudia Llosa).


quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Cisne Negro




Ontem fui assistir Cisne Negro e fiquei impressionado. Trata-se de um filme fora do comum, muito intrigante, muito profundo, e que pode ser interpretado em muitos níveis. E é de tirar o fôlego. Resumindo, é muito impactante.

Logo que o filme começa pede uma atenção especial ao espectador. Não é qualquer atenção, como na maioria dos filmes. Tem que perceber os detalhes, se concentrando nas ações, nos movimentos. Aliás, no filme todo! Detalhes existentes até na cena da mutilação de um novo par de sapatos de balé, cena em que fica notório o quanto sofre uma bailarina, que sacrifícios precisa fazer para ter nem que seja um pequeno papel de destaque. Foi a partir daí que percebi o quanto iria sofrer junto com a personagem da Natalie Portman, Nina. Detalhes. Entendeu?

Rapidamente viajamos na trama, acompanhando e torcendo para que Nina, uma pessoa que sente intensamente a necessidade de, finalmente, assumir o papel de uma vida, antes de cair no esquecimento. Sentimos, ou embarcamos, em sua angustia de não conseguir atingir a perfeição para o papel do Cisne Negro na peça O Lago dos Cisnes, muito embora seja perfeita para encarnar o papel de Cisne Branco, só que obrigatoriamente tem que ser realizado pela mesma bailarina. Passei boa parte do filme torcendo para que Nina se soltasse, que deixasse sua grande passividade diante dos obstáculos e fosse agressivamente ambiciosa e decidida. Ela teme deixar sua técnica de lado caso se entregue à paixão na tentativa de melhorar seu desempenho. Tornar-se o Cisne Negro não exigiria pouco de si mesma, deveria entregar-se mais, de uma forma que imaginava ser impossível, inatingível. E isso a incomodava muito.

O Lago dos Cisnes exige uma dançarina que atue tanto como o Cisne Branco com inocência e graça, e como o Cisne Negro, que representa a malícia e sensualidade. Nina se encaixa no papel do Cisne Branco perfeitamente, mas tem pela frente uma concorrente que é a própria personificação do Cisne Negro. E nessa rivalidade Nina começa a ficar mais em contato com seu lado obscuro, com uma imprudência que ameaça destruí-la.

Pra piorar, o mundo de Nina é muito pequeno. Ela tem que se submeter aos caprichos de uma mãe superprotetora, mora num apartamento apertado e divide um camarim abarrotado de coisas com um bando de dançarinas. Dá uma certa sensação de claustrofobia – que é o que o diretor queria passar mesmo. Atrás de cada canto parece que paira uma ameaça. Sem falar da sensação de frustração iminente, dando a entender que Nina vai se ferrar a qualquer momento. É o peso da pressão, somado ao da superação que precisa ser conquistada, mas tudo isso junto com a enorme necessidade de atingir a perfeição. Só que pra atrapalhar um pouquinho, Nina passa por crises de medo e de subjugação e é nisso que o trabalho da atriz Natalie Portman demonstra ser magistral, fazendo que o filme não seja um simples melodrama. Simplesmente brilhante. Sem uma grande atuação da atriz principal, o filme seria bom, ficaria acima da média, obviamente, porém, seria frio, seco e não seria tão fantástico.

E fantástico seria dizer o mínimo. Méritos para o diretor, o sempre surpreendente Aronofsky, que consegue um equilíbrio convincente entre o surreal e o real, fazendo a gente se infiltrar na psique de Nina. Uma grande sacada é a constante utilização de espelhos que simbolicamente reflete a mente atormentada da bailarina. Ela passa por tudo aquilo mesmo ou estava só imaginando? O que é real e o que é alucinação?

O diretor nos leva a um grande labirinto sobre a questão da sanidade de Nina e sobre a obsessão pela perfeição e que caminho foi seguido dentro deste labirinto, tendo em vista a rigorosa disciplina do balé. Ele consegue fazer o filme crescer a cada minuto, a cada frame, culminando num desfecho arrasador, para, enfim, nos apresentar uma personagem que soube passar o que aprendeu a duras penas (sem trocadilho). Soube passar o que aprendeu tanto aos companheiros da apresentação do balé quanto ao público do filme Cisne Negro. E você não pode ficar de fora disso.