quinta-feira, 21 de março de 2013

O repouso do guerreiro




“Quase tenho medo dele: não pensará em me perder? Para onde me arrasto? Eis que meu cérebro começa a abrigar noções irracionais de pecado, de queda, de vício, de perdição.”
Christiane Rochefort, in O repouso do guerreiro.


Recentemente, ao rever os livros da minha biblioteca, numa pequena arrumação insólita e praticamente improdutiva (improdutiva de tanto que eu mesmo me interrompia para ficar “namorando” os livros lidos e não lidos). E ao me deparar com O Repouso do Guerreiro, de Christiane Rochefortei, fui levado a fazer uma comparação: esta admirável escritora é, para mim, quase que a Clarice Lispector da França. Esse "quase" não permite que exista outra Clarice Lispector. Claro. Ela é única.

Este ótimo romance conta a história de Geneviève, uma jovem parisiense, estudante de psicologia muito educada e elegante, que se apaixona perdidamente por Renaud. E é essa paixão que a faz viver uma grande desilusão.

Renaud é um ex-soldado que perdeu a esperança após o bombardeio de Hiroshima e que dez anos mais tarde tenta se matar em um hotel de uma pequena cidade. Geneviève o encontra acidentalmente, salva sua vida, e torna-se sua amante. E com ele tem seus primeiros orgasmos.

Mas nem tudo é bonito e prazeroso nesse relacionamento: Renaud é uma pessoa muito atormentada, exigente, desprezível e rejeita o mundo como um todo. Além de ser violento e impedir Geneviève de rever amigos e a família. Ele acredita que Geneviève é guiada principalmente pelo apetite sexual e quer forçá-la a admitir. E isso faz com que se refugiem em delírios, mas é nessa devassidão que um se anula diante do outro.

A história é centrada na relação ambígua dos dois personagens principais. Não podemos deixar de perguntar por que Geneviève se agarra tão teimosamente a um personagem tão desprezível que inadvertidamente recusa o amor que recebe dela e que ainda insiste em afirmar que ela confunde o desejo sexual com amor sincero justamente por estarem intimamente ligados. O que nos leva a pensar no que exatamente ele teme. Ser pego em uma rotina? Teme ser pertencido a alguém? Tornar-se um hipócrita? No entanto, seja o que for que o impede de se entregar ou de deixar a jovem viver serenamente (sozinha, claro), fica evidente que sua própria arrogância não o impede de se odiar, sendo que é isso mesmo que o desconforta. E pra piorar faz questão de levar sua amante com ele em sua podridão desmesurada.

No decorrer da narrativa o que vemos, e o que nos revolta, é a decadência de uma mulher que faz tudo por amor e o quanto é fortemente afetada pela sua relação emocional e sexual, se afastando do seu mundo, correto e muito seguro, para embarcar numa submissão que aparentemente não terá fim. Tudo nos leva a imaginar que ela vai aceitar o pior e chegar ao fundo do abismo físico e moral.

Até que ponto uma mulher pode se perder em nome de uma paixão? E, afinal, qual é a tênue divisão entre moral, obsessão, decadência moral, dignidade, submissão e prazer? Aquela doce loucura deliciosa de se viver é sempre fascinante e intrigante, mas qual é o limite?

O título e os acontecimentos desse ótimo romance, que exalta a redenção, de forma alguma chega a enganar os leitores: a mulher é, sem dúvida alguma, o perfeito descanso do guerreiro.

A recíproca não é verdadeira.


Márcio Luiz Soares
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Confira um trecho do livro aqui.

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Imagem: frame do filme francês homônimo. O romance foi adaptado para o cinema em 1962, com direção de Roger Vadim e com a participação de Brigitthe Bardot no papel principal.

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