sábado, 25 de abril de 2015

Perdido nas senhas




“O homem é o homem e sua circunstância.” Não, esqueça Ortega y Gasset. O homem do século XXI é o homem e suas senhas.

As senhas são sua identidade secreta assim como a identidade secreta do Super-Homem é Clark Kent. Clark Kent é um bobalhão grandão, de óculos. Eu, Joaquim das Neves, sou um bobalhão de óculos, ao entrar na cabine do caixa eletrônico. Mas, ao digitar a senha – “chapa do carro do meu pai quando eu era criança” -, transformo-me num Super-Homem capaz de fazer jorrar dinheiro. No cartão de crédito sou “nosso telefone na infância”; no cartão da farmácia, “nome do meu cão mais os quatro primeiros algarismos do telefone de minha primeira namorada”; no UOL, “nome de minha avó materna mais os quatro primeiros números do telefone da avó paterna”; na Net, “nome da minha irmã mais a chapa do carro do meu cunhado”.

As senhas vão compondo um patchwork de minhas memórias e meus afetos.

Digite seu CPF e, em seguida, seu código de acesso. Lá vai: 033.546.880. E o código de acesso? Deixe-me lembrar. “Telefone do antigo escritório?” Não deu. Você tem mais duas tentativas. “Data de nascimento de minha mãe.” Não deu. Talvez “data de casamento de meus pais”, mas esqueci a data de casamento de meus pais. Vou arriscar. Esta é sua última tentativa. Não, agora me lembro. É “dia e mês de nascimento de minha mãe mais ano de nascimento de meu pai”. Lá vai. Não reconheço esta senha. Desculpe, mas seu acesso será bloqueado.

Para desbloquear, o senhor terá de responder a algumas perguntas. Qual a última loja em que efetuou compras com o cartão? Casas Bahia. Não confere. Cite um estabelecimento em que faz compras frequentes. Padaria Aracaju. Não confere. O senhor não me poderia fazer perguntas mais fáceis? A raiz quadrada de 80 549? Ou o último parágrafo de Ulisses, de Joyce? Diga a data de vencimento de seu cartão. Mas é minha mulher que sempre paga. Desculpe, não posso desbloquear seu cartão. Sou um mero Joaquim das Neves, de quem não se pode reconhecer a identidade porque não sabe o que compra, onde compra e quando paga. Sou um Clark Kent que se atrapalha na hora de trocar a roupa, na cabine telefônica, e por isso não consegue voar.

No plano de saúde sou “nome da primeira professora mais dia do aniversário do tio Jorge”. Ou será que sou “três primeiras letras da rua da infância mais os três algarismos do número da casa”? Não. Deve ser “telefone do primeiro emprego mais nome do avô da minha mulher”. Estou confuso. Sofro de uma crise de asma, estou a ponto de morrer, e não consigo lembrar mais nada: casamento dos pais, nascimento do filho, sobrenome do patrão, nome do cachorro, marca da primeira bicicleta, time do coração, chapa do automóvel, telefone da tia Alzira.

Estou bloqueado no cartão e na vida, por isso vou morrer neste saguão, e em minha lápide escreverão: “Aqui jaz alguém que esqueceu sua senha, portanto é inútil tentar identificá-lo”.

Certa vez experimentei uma senha única para tudo, mas me alertaram: “Não é aconselhável usar a mesma senha para diferentes serviços”. Também é aconselhável trocar a senha de tempos em tempos. Eis-me com uma multidão de identidades, o que equivale a não ter nenhuma. Serviria para fornecer um bonito painel da minha vida, mas não para viver – como viver sem senha?

Qual o seu nome? Joaquim das Neves. CPF? 033.546.880. Telefone, com código de área? (12) 8456-7890. Agora digite sua senha, composta de números, letras e sinal. Tente outra vez, pausadamente. Errou de novo, infelizmente não poderemos atendê-lo. Mas se eu já dei meu nome, CPF, telefone? Se quiser, posso dizer o nome de minha avó, do cachorro, do time favorito, o número de meu primeiro telefone, o da chapa do primeiro automóvel, o da data de nascimento de minha filha – o que não sei é combiná-los de forma a satisfazê-lo, senhor. Desculpe, senhor Joaquim das Neves, se é que o senhor se chama mesmo Joaquim das Neves, se é que o senhor é o senhor, se é que tem existência real.

Uma vez anotei todas as senhas. Mas onde guardar a anotação? E como lembrar onde foi guardada, depois? Seria preciso outra anotação, com o lugar onde foi guardada, mas onde guardá-la? Não. Anotar também não é aconselhável. A conclusão é que o mais seguro de tudo é esquecê-las todas. Pronto. Estou completamente blindado, inclusive contra mim mesmo. Não sou eu para nada. Não existo. Melhor assim.


Roberto Pompeu de Toledo
(Revista Veja - edição 2419 - abril/2015)

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