sábado, 6 de setembro de 2008

O jogo




Eu queria ter me tornado um jogador de futebol. Laerte também. Por isso, durante nossa pequena infância, participamos de todas as “peneiras” que os “olheiros” promoviam. Mas nunca nos destacamos. No máximo eu fui escolhido para continuar num "rachão" por mais tempo que os demais concorrentes. Acho que o olheiro queria tirar a última seqüela de dúvida. No final, fui dispensado. Laerte me aguardava à beira do campo, ansioso e torcendo por mim. Voltamos para nossas casas, mais uma vez decepcionadamente esperançosos.

Até que novas atividades, outros interesses de moleque, tomaram conta de nós. Mas antes disso, em um dos meus aniversários, ganhei um jogo de tabuleiro. Banco Imobiliário. Meu tio me ensinou a jogar, dedicando desastrosos minutos me mostrando as cartas, o dinheiro farto e falso, e o objetivo do jogo. Meu interesse pelo jogo foi grande, tanto que o deixei esparramado sobre o sofá, ao lado do meu dorminhoco avô. Preferi brincar de esconde-esconde por causa da Eliana, a menina mais bela do meu prédio. Eu só me escondia ao lado dela, para ficar juntinho e poder sentir o cheiro agradável do seu creme de cabelo. Eu não sabia disso. Nem de outras coisas. Apenas que era dois anos mais velha. Que ela era precoce, eu também não sabia. Ela não reclamava por eu querer ficar sempre perto dela nas brincadeiras. Sorria. Eu devolvia. Só devolvia. Silenciosamente.

No fim da festa do meu aniversário, a idéia de brincar de Banco Imobiliário foi dela. Assim que ela juntou algumas posses, o maior objetivo do jogo, disse, toda sorridente, que já podia casar. Alguém gritou do outro lado que quem tinha de ter posses para poder casar era o homem.

Laerte ficou maravilhado com o jogo. Tanto que queria sempre brincar. Durante semanas. Insistiu. Eu não. Não vislumbrando a possibilidade de ganhar um jogo igual, perguntou se eu não toparia trocar com ele. Dependia. No seu aniversário, não ganhou o jogo que pediu. Ganhou duas bolas de capotão. Uma ficou sendo minha. O Banco Imobiliário, dele.

Aqueles outros interesses, os de moleque, logo se foram. Minha bola de futebol, a única que tive em toda minha vida, o tempo a desgastou. As lembranças dela, também. De vôlei, fiz coleções. Assim como coleciono mudanças - de opinião, de desejos, de ambições. Achei mais fácil ser professor de educação física e instrutor de surf.

Um dia ensinarei os filhos que terei. Eliana teve três. Nunca se casou. Com Laerte teve o primeiro. Mas ele não o vê. Está preocupado demais em ganhar dinheiro com seus empreendimentos.


Márcio Sclinder


*
Esta é a primeira parte da trilogia Vozes.
Episódio 2 - Razões
Episódio 3 - Desejos


* * * 
[ilustração: Andaime, de German Lorca]

10 comentários:

Marcello BBlanc disse...

que texto bacana!! como publicitário não pude deixar de perceber a relação da ilustração com o texto!! muito bem sacado!! abraços

Saco de Bagulhos disse...

Valew, Cello! Realmente, fui feliz na escolha da imagem! Um achado! Legal vc ter percebido a relação. Simbolismos, meu amigo, inseridos na vida da gente!! Assim como os sinais, as metáforas, entre outras coisas que nem todos são capazes de sentir, de perceber, de querer sentir, observar... Abraço

Anônimo disse...

Judia! judia mesmo!!! que gostosura de história! amei! e com trilha sonora, mais uma vez!! rs beijos Samantha

Ana disse...

Como comentaram antes, uma história legal, de ótima narrativa e cheia de símbolos - fantástico! Palmas pro autor!! Tem mais? Quero conhecer outros textos dele. A ilustração, de fato, é muito significativa com relação ao texto - parabéns! E como a Samanta comentou, com trilha sonora, a leitura fica mais saborosa - parece que clocks casou muito bem com a história... Bjs

Saco de Bagulhos disse...

Samantha: tá vou tentar parar de judiar assim, prometo!! kkkk
Ana Luisa: hum... eventualmente deverá aparecer mais coisas do autor, ah, pode apostar!! Que bom que reparou no significado do desenho.
Valew, meninas!
Beijo

Unknown disse...

Eu li, reli, refleti e reli outra vez!! Uma narrativa legal que me fez divagar sobre minha infancia... Bom, deixa pra lá. Só sei que gostei muito e cheguei numa conclusão: isso dá um filme! Pensa. Leia e pense nisso. Imagine se não estou certo. Abraços

Saco de Bagulhos disse...

Hum... agora q vc tocou nisso, Sérgio, vou pensar a respeito. Mas, só dá pra ficar no pensamento... infelizmente...

Unknown disse...

Não sei não. Tenho um amigo que está fazendo curso de cinema. Vou mostrar pra ele e ver se não dá pra virar um curta, pelo menos. Vc tem contato com o autor? Se ele autorizar e meu amigo se interessar...

Saco de Bagulhos disse...

Concluí, depois de tua sugestão, que é possível essas historietas virarem um filme, ou mesmo um curta. Mas teriam que ser mais elaboradas, com uma boa adaptação, talvez. Se eu tenho contato com o autor? Você nem imagina como!! rs

Rosangela O Araujo disse...

Seu texto retratou sua visão sobre a sua infância. Descreveu algumas fases com seus respectivos interesses, quer sejam eles passageiros ou não, mas que de qualquer forma, se tornaram marcantes em sua vida. Marcantes pelo fato de terem ensinado que tudo é passível de mudanças, ou seja: opiniões, projetos, estilos de vida, sonhos, desejos e ambições. Que estas “mudanças” nos ensinam a ter garra e a lutar sempre em busca de nossos velhos ou novos sonhos. Seu texto vem carregado de uma leveza, de um certo encanto que é impossível não retomarmos a nossa infância. Parabéns!!!! Bjs